quinta-feira, 14 de maio de 2009

Revolução Cultural X Libertação Cultural: o poder da leitura em Balzac e a costureirinha chinesa


Rodado em um estonteante cenário, que retoma a zona rural entre as montanhas da China comunista, o filme Balzac e a costureirinha chinesa (Balzac et la Petite Tailleuse Chinoise. França/China: 2002) é um dos mais belos filmes do cinema contemporâneo. Prima não só pela história: um drama sobre a construção da identidade cultural em conflito com a liberdade individual, contextualizado durante o período da Revolução Cultural Chinesa, sob o regime totalitário de Mao Tse-Tung, em meados da década de 60, envolvendo ainda um triângulo amoroso vivido pelos personagens, Luo (Chen Kun) e Ma (Liu Ye), dois jovens estudantes chineses, com uma bela costureirinha local (Zhou Xun); como também pela produção (Lise Fayolle): o belo cenário favorece a fotografia (Jean Marie Dreujou), repleta de imagens fortes e digna de sinceros elogios. O roteiro é adaptado do best-seller de mesmo título, do até então desconhecido escritor de origem chinesa Dai Sijie, que vive há alguns anos na França e baseou-se na sua própria experiência nos campos de reeducação para elaborar este que é o seu primeiro romance. Dai Sijie é também o diretor do filme. A direção de arte fica por conta de Cao Jumping. Sucesso de público e crítica, o livro vendeu mais de 400 mil cópias e foi indicado ao Goncourt 2000, o mais importante prêmio da literatura francesa. O filme foi indicado ao globo de ouro de melhor filme estrangeiro em 2002.
Na história, os jovens Luo, narrador da história, e Ma, seu amigo, filhos de médicos e dentistas chineses, são expulsos da cidade, assim como vários outros estudantes, artistas e críticos, e enviados aos vilarejos de “reeducação” dos camponeses locais, no intuito de que esqueçam os valores burgueses e intelectuais aprendidos na cidade em contato com as influências capitalistas e adquiram os valores do proletariado rural assimilando os ideais do comunismo. Nessa nova situação, entram em choque com as tradições da população bastante pobre da aldeia que também não estão acostumados com o estilo de vida urbano dos garotos (a China é um país conhecido, ainda hoje, pelos contrastes entre o urbano e o rural), além de estarem sob a rigorosa vigilância dos oficiais do Estado e do Exército Vermelho, responsáveis por mantê-los disciplinados nos trabalhos do campo e distantes de “confusão”. Uma passagem que ilustra bem esse confronto é quando os aldeões desconfiados quanto ao violino (instrumento musical considerado erudito) que um dos dois carrega, anunciam que irão queimar o instrumento. O jovem, na tentativa de salvar o violino, propõe ao amigo que toque uma linda sonata de Mozart, esquecendo-se que tal música era também proibida pela Revolução. Rapidamente o jovem descobre um meio de sair da enrascada afirmando que o título da música era "Mozart pensa no presidente Mao", e assim a censura cede espaço a aplausos entusiasmados.
É na aldeia que eles conhecem e se apaixonam pela bela costureirinha, uma jovem camponesa que ainda desconhecia a literatura e o amor; e pelas obras então proibidas de Balzac e outros escritores ocidentais como Flaubert, Tolstói, Victor Hugo, Dumas, Baudelaire, Rousseau, Dostoievski e Dickens, considerados literatura subversiva pelo regime comunista chinês, e por isso, escondidos em uma mala empoeirada de um dos outros jovens que havia sido igualmente enviado para o vilarejo.
Nesse contexto, a descoberta do prazer literário ganha papel central no filme. Durante a Revolução Cultural de Mao Tse-Tung muitas universidades, escolas e bibliotecas foram fechadas, os livros eram confiscados. A dificuldade de acesso ao conhecimento é uma das formas principais de dominação (inclusive em sistemas democráticos, como o nosso). Ao entrarem em contato com as obras proibidas, os jovens experimentam uma grande sensação de autonomia e liberdade, o que modificará para sempre os seus comportamentos e sua maneira de encarar a vida. Durante as sessões escondidas de leitura os jovens entram num mundo mágico onde a opressão não pode os alcançar.
Bastante distante das super produções americanas, o filme emociona pela sensibilidade com que trata de temas como a descoberta do amor e do prazer literário, o conflito entre gerações e entre ideologias, a opressão política dos regimes totalitários e a busca pela liberdade. Traz um ponto de vista questionador sem, no entanto, tender ao panfletarismo. O que ganha mais destaque no filme, ao contrário do que muitos podem imaginar, não é uma propaganda contra o regime comunista, mas antes os aspectos dramáticos que envolvem os personagens. O aspecto político surge como um dos elementos que garantem a maior tensão do drama relatado.
Reunindo tantos elementos da narrativa e do cinema bem trabalhados como personagens, enredo/roteiro, ambiente, fotografia, música (Wang Pujian), dramas individuais e contexto político, o filme é prova de que o cinema tem o poder de humanizar através da reflexão e da sensibilidade.

Tássia Tavares de Oliveira
Monitora da disciplina PLPT II - 2009.1

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